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NA LINHA DO TEMPO

Porphire não podia distinguir se a tempestade que se anunciava, com incomparáveis relâmpagos e trovoadas, estava se formando dentro ou fora de si mesmo. Em volta, as ruas e casas tinham um desenho diferente – não parecia a mesma cidade que ajudara a construir, pouco mais de vinte anos antes. Sabia de cor cada ruela ou beco de Mistral, e a cidade mais próxima não era, por assim dizer, nada próxima – talvez oito mil quilômetros de terras acidentadas e sempre sacudidas por terremotos, ao norte.
Mistral era um oásis, minuciosamente projetado e construído bem ao sul do continente. Alguns dias de navegação em águas frias, mas calmas, e se poderia chegar ao pólo meridional, guiando-se por constelações sempre conhecidas. Eram os pontos mais frios do planeta e, por isso mesmo, os únicos onde a civilização ainda prosperava.
Momentos antes daquela tempestade, Porphire estava em outro canto de Mistral, se é que ainda estava na cidade. Poetas e bêbados, menestréis chegados da estrada após dias de viagem, tomavam o último porre da noite, cantando versos antigos na taberna de Juanes.
Porphire até se lembrava dos últimos versos que falara, repetindo Maiacovski:
“Ó vós, mulheres, que amais a minha carcaça, e tu,
moça que não pretendes ver em mim mais que um irmão,
jogai vossos sorrisos ao poeta
para que eu os costure, como flores, à minha blusa de dândi.”
Uma assistente mais empolgada, chegou a levar a sério o poema, e atirou-se no colo do menestrel, dando-lhe um beijo. Era uma recompensa injusta, já que os versos tinham quase trezentos anos, e haviam sido escritos muito longe dali.
Soube, depois de algum tempo de dedicação à moça – afinal, isso era uma questão de princípios – que se tratava de uma tripulante do navio de pesquisa Stein, que atravessara o centro do planeta, estudando tempestades e as altas temperaturas. Na verdade, a carência da jovem se justificava, e o pitoresco encontro de poetas – além de algumas canecas de um vinho pouco recomendável – haviam liberado os seus instintos.
Porphire poderia jurar que ainda estava lá com aquela moça, como era mesmo o seu nome? “Ah! Sim, Hanna, como a minha tia polonesa”, pensou. Mas e aquela tempestade? E as ruas estranhas na cidade que viu nascer?
Uma luz tremeluzia numa pequena casa em estilo vitoriano. “Mas que mistura de estilos nessa cidade! Parece um museu ao ar livre”, pensou Porphire, enquanto sentia a força dos primeiro pingos da chuva. Nunca vira uma tempestade chegar tão rápido a Mistral, sem que os insuportáveis alarmes meteorológicos soassem como gralhas enlouquecidas.
Foi o tempo exato de correr a pequena rua até a casa que mantinha a luz acesa àquela hora, para pedir abrigo, e a tempestade caiu como uma bomba. Ninguém atendeu aos seus gritos por ajuda e Porphire não teve dúvidas – forçou a fechadura, entrou atabalhoado e deixou-se escorregar da porta até o chão. Tirou do paletó o livro amarelado com os poemas de Maiacoviski, para ver se estava intacto, mas não pôde deixar de pensar:
- E eles se chamavam de futuristas ... Se soubessem a bosta de futuro que seria! ...


Realmente, aquele não era um dos melhores tempos para se viver na Terra. Apenas parte do hemisfério Sul era habitável com relativa segurança. No norte, somente algumas comunidades de pessoas arraigadas, e apegadas ao seu passado, tinham persistido no último século. Algumas bases de pesquisa trabalhavam nas possibilidades de se controlar o efeito estufa, mas praticamente nenhum progresso havia sido alcançado.
Há muito tempo – muito mais do que Porphire tinha de vida – que as condições meteorológicas não permitiam vôos. Os aviões e jatos foram aposentados e apenas os versáteis heliplanos eram utilizados para vôos muito mais curtos, a baixa altitude. Acima de duzentos pés, tudo conspirava contra o que voava – ventos de até 300 quilômetros por hora, péssima visibilidade, nuvens carregadas e descargas elétricas que causavam explosões em pleno céu. Isso, é claro, além das tempestades torrenciais que deixavam três quartos da Terra num constante dilúvio.
O degelo dos pólos fez antigas cidades costeiras sumirem do mapa em quase todo o mundo, repetindo o mito de Atlântida. Houve um tempo em que mais de 15 bilhões de pessoas viviam naquele mundo, mas isso fora talvez dois séculos atrás. Agora pouca gente tinha coragem de ter filhos, poucos tinham coragem de nascer.
Pelo pouco que Porphire sabia sobre sua origem, seus avós paternos tinham navegado em um pequeno barco desde a Europa, quando a vida por lá se tornara insustentável. Era como redescobrir aquele continente mais ao sul. Foram semanas no mar, esbarrando em ilhas que antes eram partes de cidades, que acabaram submersas. Nesse caminho desesperado, a maioria dos imigrantes morreu, mas algumas pessoas tinham sorte – se é que se pode chamar de sorte continuar vivo em um mundo assim ...
Cinqüenta anos depois, Porphire saíra de Pacífica, a colônia que seus avós ajudaram a fundar em antigas terras brasileiras, para fundar uma colônia mais ao sul – Mistral, que estava destinada a tornar-se um importante entreposto ligando a imensa parte alagada do planeta ao pólo Sul. Porphire trabalhou na equipe de Zéfiro Colette, o projetista que elaborou a intrincada arquitetura de Mistral, uma cidade segura e autosuficiente.
Colette era uma estranha mistura de antigo e moderno – a principal autoridade em arquitetura naquele caos de calor e água, e um menestrel inveterado, beberrão e mulherengo. Trouxera em seu grupo gente como o taberneiro Juanes, e destinara um lugar de destaque à Zona Boêmia da cidade em seu projeto. Para ele, sem poesia e liberdade, não valia à pena viver naquele mundo destruído.
Para onde ia, carregava um violão surrado, feito por ele mesmo, e uma mochila com livros de todas as épocas. Porphire, que naquele tempo não tinha nem vinte anos, admirava o velho Colette. Com ele aprendeu a tocar e fabricar violões, e a colecionar livros, assim como a conhecer completamente aquela cidade. Sentia como se tivesse herdado Mistral, depois da morte de Zéfiro Colette e, de fato, Porphire era uma espécie de celebridade por ali, participando de cantorias e bebedeiras inenarráveis.


Quando recuperou o fôlego depois da corrida para fugir da tempestade surpresa, Porphire levantou-se e tornou a estranhar a arquitetura daquela casa onde buscava abrigo. A escada que levava ao andar superior era feita em madeira aparentemente nobre demais para aqueles tempos bicudos. Havia também uma estante, de desenho muito antigo, no corredor próximo à escada, e livros, livros muito bem cuidados, com encadernações exuberantes.
Pareciam parte de um sonho, e Porphire precisou tocá-los, folhear suas páginas, para ter certeza de que eram reais. Havia originais de Julio Verne e Victor Hugo em francês, em primeira edição, Shakespeare completo – coisa que o menestrel nunca tivera em mãos, Byron e Shelley, Rimbaud e Baudelaire, Camões, Alan Poe, Mark Twain – tantos tesouros que Porphire sentiu-se profanando um templo.
Cheirou um dos livros – queria sensações, não apenas olhar para tudo aquilo. Sentiu o baixo relevo de uma capa, sim, era uma Bíblia! A última vez em que vira uma dessas, devia ser criança, em Pacífica. Quem quer que morasse ali, não podia ser um desconhecido em Mistral, deveria ser, isto sim, uma figura rara. Notou outros detalhes na casa – a prataria muito bem cuidada e alguns objetos antigos que só poderiam ser itens de coleção.
Por alguns instantes, Porphire pensou que, se tivesse morrido, aquele poderia ser o seu paraíso – talvez acrescido daquela fogosa tripulante do Stein, que gostava tanto de poesia ...
“Será que eu morri? Fui fulminado por um raio, e nem percebi!?” E ainda estava naquela dúvida quando ouviu um barulho na escada. “Se morri, Deus vem aí para me receber”, pensou, com certa ironia. Mesmo assim, Porphire ajeitou suas roupas e buscou uma postura reverente.
O homem que descia as escadas, ele sim devia ser o
dândi a que se referiu Maiakovski. A roupa era bem arrumada, mas o corte do paletó não dava para ser facilmente reconhecido. De que época era aquilo? Século XIX, ou XX? Quando puderam se olhar, o anfitrião abriu um sorriso.
- Senhor Porphire, eu presumo ...
Ora, então estava mesmo em Mistral, onde todos o conheciam.
- Sim, eu mesmo. Desculpe invadir assim a sua casa. É que a tempestade me pegou de surpresa e ...
- O senhor não invadiu; nós o trouxemos!
- Nós!? Nós quem?
- Seja bem-vindo, senhor Porphire, à Sociedade de Futurologia de Londres! Precisamos de sua ajuda e de alguns, digamos, esclarecimentos.


Foi um choque. Porphire ficou tonto e outra vez amaldiçoou o vinho barato que Juanes vendia. “Um taberneiro tão antigo e tão sem classe!”
- Escuta aqui, meu amigo, eu sei que estou sonhando, então vou deitar aqui mesmo e esperar acordar na sarjeta, com o pior hálito da minha vida. Com licença! – disse isto e deitou-se ao pé da escada, lutando contra aquela alucinação.
Começou a resmungar xingamentos incompreensíveis, que remontavam à toda sua herança genética. “Tem alguém pensando que eu sou idiota! Londres não está mais no mapa faz pelo menos 150 anos ...” Os impropérios prosseguiam, mas a alucinação não se movia e esperava, pacientemente, o fim daquele ataque histérico. Por fim, Porphire achou melhor encarar a situação: estava bêbado, e os bêbados sempre falavam com figuras imaginárias que pareciam ter vida própria. Ele não seria o primeiro, nem o último, a dar vexame.
- Tudo bem! Eu já notei que o vinho do Juanes caiu mal ... Então você pode continuar com seu papo, que é pra ver se eu saio dessa alucinação – levantou-se, lúcido demais para quem se dizia bêbado. O outro homem observou a figura de Porphire, um tanto desalinhada e não muito educada. Definitivamente, alguém alterara as linhas do futuro – provavelmente para pior.
Enquanto subiam a escada, Porphire não pôde deixar de pensar que a sua alucinação estava palpável demais. À sua volta, mais mobília vitoriana que, coincidência ou não, tinha esse nome em homenagem a uma rainha britânica do Século XIX. As coisas, estranhamente, se encaixavam ... Tudo tinha aquele estilo antigo, mas estava maravilhosamente bem conservado. Móveis de mais de 300 anos de idade, com cara de novos. A coisa, decididamente, estava piorando.
O anfitrião parecia divertir-se discretamente com a confusão mental de Porphire, mas tentava ser solícito.
- Só para me deixar um pouco mais confuso do que já estou, que dia é hoje? – Porphire arriscou perguntar.
- Dentro de dois minutos, entraremos no dia 3 de outubro de 1912, uma quarta-feira – disse, calmamente, o anfitrião. Porphire tentou não se afetar.
- Suponho, então, que esta é Londres, 300 anos antes do dia em que bebi aquele vinho ruim em Mistral ... Santa bebedeira! Mas que imaginação fértil, Porphire! – O homem riu, o que não deixou Porphire muito satisfeito – Você ri porque sou eu que estou ficando doido, e não você!
- Desculpe, senhor Porphire, não foi a minha intenção ...
- Nem a minha! Aliás, eu queria voltar para os braços daquela jovem caliente, e ficar com ela até amanhecer!
- Temo que isto seja impossível. Estamos tentando mudar a linha do tempo que levou o planeta até o futuro que é o seu presente ...
- Como é que é!? – Porphire estava atônito, mas indignado. Como alguém se atrevia a mudar o seu presente!? Era, com certeza, o maior dos desaforos.
- Por favor, entre! – disse o homem, abrindo uma porta à esquerda – Os outros estão esperando.


O que Porphire viu quando entrou na sala de reuniões em nada se comparava ao que já tivesse visto antes – mesmo naquele tempo louco em que vivia. Uma grande mesa, que poderia talvez ter servido ao Rei Arthur e seus cavaleiros, estava rodeada de gente muito, muito estranha mesmo. Quatro deles pareciam ter a mesma indumentária daquele estranho dândi que recebera Porphire. As outras dez ou onze pessoas pareciam ter saído de um baile de carnaval – não, um baile dos horrores! “Biodiversidade, como dizem os ecologistas”, pensou.
E era mesmo uma fauna estranha. Um senhor barbudo, aparentando um sessenta anos e vestido com roupas discretamente mais antigas, ergueu-se para receber Porphire.
- Ah! Enfim, um representante do futuro mais longínquo! Que alegria poder conhecê-lo!
- É!? Certo, mas e o senhor, quem é? – perguntou Porphire, impaciente.
- Verne, Jules Verne.
- O escritor!?
- E o senhor conhece minha obra? Mon Dieu, é incrível como as palavras vão longe!
- Mas espere um pouco, eu peguei um furo na história de vocês. Eu sou bom em literatura, minha gente! Em 1912 Julio Verne já tinha morrido!
- Oui, mas vim do passado, trazido pelo amigo Wells – apontou para um simpático homem de óculos, decididamente um inglês.
- H.G? O Wells? Aquele!?
Parecia que quase todos por ali já tinham passado por aquela experiência traumática – chegar a uma casa londrina, em 1912, vindo de outra época. Ninguém estranhou a confusão mental de Porphire. Um homem com roupas de caubói, que parecia sair do já lendário Oeste Americano, levantou-se e ofereceu a cadeira ao atônito convidado.
- Não venha me dizer que você é Jesse James, ou Búfalo Bill?
- Não, não – sou Ronald Regan, ator de Hollywood ... Também não estou entendendo direito o que está acontecendo.
Porphire sentou-se e Regan puxou outra cadeira à mesa, sentando-se ao lado. Havia um bocado de gente esquisita ali, até um sujeito com uma guitarra, coisa que era raridade no tempo de Porphire. O homem que, ao que se dizia, era H. G. Wells, o próprio, pediu silêncio para que pudesse explicar a situação. Era, certamente, o que todos mais queriam
- Prezados convidados, estamos no dia 3 de outubro de 1912. A cidade é Londres. Esta é a sede da Sociedade de Futurologia, que reúne alguns escritores e cientistas para a análise de questões relativas aos destinos da humanidade. Como aqueles que conhecem meu livro já devem estar imaginando, a máquina do tempo, não era simples ficção – e foi com ela que trouxemos aqui algumas pessoas decisivas para o seu tempo e para o desenho do futuro. Contamos, também, com a presença do senhor Verne, conselheiro desta entidade, que veio de um passado próximo para nos auxiliar nesta questão importante.
Um homem, trajando vestes pesadas e ricamente ornamentadas, estava realmente indócil:
- Quanto tempo o senhor acredita que será necessário para o Vaticano dar pela falta do Papa? Eu não posso ficar aqui enquanto o mundo está em pé de guerra – argumentou, disfarçando muito mal o pecado da ira.
- Considere tudo isto como um sonho, ou, talvez, o primeiro milagre do Papa Paulo VII. Mais um e já poderá ser santificado! – H. G. Wells não mediu as palavras. O assunto deveria ser mesmo sério. – Se o caro Pontífice tiver a paciência de aguardar alguns momentos, poderá voltar logo para o seu tempo e lugar, e nem se lembrará com clareza que nos viu.
O escritor explicou aos presentes que todos, de alguma forma, influiriam decisivamente na linha do tempo, levando o mundo à estagnação e, mais dia menos dia, à morte. Ele e seus colegas reuniam-se semanalmente para traçar a linha do tempo – o caminho lógico que ele seguiria, com base nos fatos dados. Wells e sua máquina viajavam a outras épocas, registrando a situação do planeta em pontos futuros.
Era uma ciência delicada. A regra era não interferir no tempo, apenas estudá-lo – mas o caso agora era especial. O futuro, 300 anos à frente daquele dia 3 de outubro de 1912, era o princípio do fim. Um mundo devastado pelo calor, por mares que não paravam de crescer, atmosfera tóxica, cidades que antes abrigaram milhões de pessoas varridas do mapa – e apenas alguns heróis lutando em cidades projetadas, como colonizadores em seu próprio mundo. Dito daquela forma, era algo realmente cruel. Até mesmo Porphire se deu conta de que, como pensara alguns minutos antes, vivia numa “bosta de futuro”.
O problema é que toda aquela situação parecia insólita demais para ser levada a sério.
- Não se enganem, meus caros, enquanto o mundo pulava de uma guerra para outra, os governantes não deram atenção ao caos social e ao abismo ecológico. O que vocês estão para construir, nos próximos 120 anos, vai gerar o fim da era industrial e, quase certo, o fim da Terra.
- Bom, eu não vou viver para ver isso! – disparou, ao lado de Porphire, o agitado caubói do cinema.
- Realmente, senhor Reagan. O senhor será eleito presidente do seu país e será morto em um atentado. A lacuna levará ao poder prematuramente o seu vice, um ex-governador texano de nome Bush. O seu país terminará a década de 80 em guerra com Iraque, Líbia, Irã, Paquistão e outros países islâmicos, que teriam encomendado a sua morte.
- Ora, faça-me o favor! Presidente, eu? E assassinado!?
- Exatamente. O problema é que, mesmo sendo belicista e radical em muitos pontos, mesmo atuando de forma populista e optando por ataques militares a diversos países, o senhor seria fundamental no processo do fim da chamada Guerra Fria. A sua atuação, ao lado do líder soviético Gorbatchov, aqui presente, caso o senhor permaneça vivo, poderá diminuir as tensões culminando com a queda do Comunismo na União Soviética.
- Não consigo imaginar ... eu, presidente!
- Um presidente morto – e o seu assassinato é um ponto chave, precipitando o uso de arsenais nucleares que vão diminuir a qualidade de vida em todo o mundo.
O Papa Paulo VII confirma a história.
- Ele tem razão. Houve uma série de atentados nos anos oitenta. Você foi morto. O Papa que me antecedeu também, por um radical islâmico. Ele, se me lembro bem, escapou por pouco. – disse, apontando para o homem com uma guitarra. Tinha cabelos longos e usava óculos de aro redondo.
- Eu, cara!? Mas que iria querer matar um roqueiro? Eu sou de paz, irmão!
H. G. Wells, sem perder o fio da meada, apressou-se em responder.
- O senhor John Lennon, que por mais de uma década levava mensagens de paz em suas canções, passará por uma experiência traumática em dezembro de 1980, com um atentado. Ele escapará, mas sua mulher, Yoko, morrerá. Enlouquecido, Lennon não mais se recuperará dessa terrível perda, e suas canções seguintes serão amargas e revoltadas.
- Pô, cara, eu sou de paz, mas quem fizer mal a Yoko vai quebrar meu coração! – disse o roqueiro, ficando pensativo. Wells tentou resumir os fatos, para que a reunião não se perdesse em detalhes dispensáveis.
- Em suma, alguns fatos e algumas atitudes que vocês todos irão tomar, vão levar o mundo futuro ao caos. O jovem príncipe William preferirá abdicar, ainda ressentido com a perda da mãe. Em seu lugar, o irmão mais novo, Henry, assumirá o governo ainda jovem e enfrentando problemas pessoais, que o farão negligenciar a coroa do Reino Unido. O senhor, Aiatolá, decidirá apoiar terroristas em um atentado que matará milhares de pessoas na América. Já o senhor, presidente, precipitará uma guerra nuclear contra a Índia, que por pouco não varrerá a Ásia do mapa. O senhor, Luis Inácio da Silva, fechará o Brasil ao mundo quando eleito, e a conferência sobre ecologia, que haveria em seu país, em 1992, será cancelada ...
A explanação continuou por mais alguns minutos. O clima ficou pesado. Quase ninguém tem a verdadeira coragem de encarar o que virá, o resultado de suas atitudes. Wells continuou apontando, um a um, os erros históricos que aquelas figuras cometeram, pelo menos do ponto de vista da Sociedade de Futurologia de Londres. Enquanto isso, Porphire, deslocado em meio a tantos dados com que não estava familiarizado, pensava: “Mas, afinal, o que foi que eu fiz!?”
- De todos os nossos convidados aqui, o único que nada fez contra o mundo, mas que sofre na pele os efeitos, é o senhor Porphire, natural de Pacífica, e, em 2208, residente em Mistral, cidade que ajudou a fundar no que hoje é a República Argentina. Ele está aqui para testemunhar sobre em que se transformará o mundo, no século XXIII. Por favor, senhor Porphire, conte-nos como será o mundo no seu tempo!
Porphire tremeu. A alucinação mais bem elaborada de todos os tempos queria um relato seguro de um menestrel alcoolizado, que acabava de sair de uma farra. “Tudo bem”, pensou, “já perdi minha noite com Hanna mesmo!”


O tempo que levou falando pareceu não importar. Quando terminou, os olhares estavam mais atentos que nunca, vidrados em Porphire e no seu mundo sombrio.
Bravos!! – ergueu-se, empolgado, o simpático Júlio Verne – Wells, não se atreva a escrever essa história. Eu faria primeiro!
Sim, Jules, você é o mestre ... – voltou a atenção para a assistência, que ainda estava aturdida. – Muito bem, se os senhores pretendem salvar o mundo, a hora é esta, as mudanças devem ser feitas. Quem não estiver de acordo pode voltar ao seu tempo, sem qualquer lembrança deste encontro, e nós estudaremos medidas paliativas, para evitar efeitos tão drásticos na linha do tempo. Quem quiser colaborar, receberá uma instrução ou visita quando as mudanças forem necessárias.
- Aí, cara! Yoko ainda vai ter que morrer?
- Não, senhor Lennon, a sua opção é morrer no lugar dela, e tornar-se um mártir da paz ...
- Pô, mas eu vou ficar sem ela do mesmo jeito ...
- Só que, acreditamos, o mundo será melhor sem suas canções de revolta. A opção é sua. – Lennon refletiu um pouco e cantarolou o refrão de uma música que Porphire nunca tinha ouvido, que falava sobre um mundo sem guerras, sem fronteiras, sem desigualdades.
- Então, futurista, pode me colocar na lista!
Aos poucos, todos aderiram, assinando um contrato redigido pela Sociedade de Futurologia. Era aquela história: se alguém relutasse, receberia a visita de um emissário dos futurologistas, lembrando o compromisso assumido em 3 de outubro de 1912. Até mesmo o Papa Paulo VII, que teria de aguardar décadas para assumir o pontificado, acabou assinando o contrato, sem antes perguntar:
- Tem certeza de que não estou vendendo minha alma ao diabo?
- É claro que não está! – respondeu Wells, esboçando um sorriso. – Estamos do mesmo lado, caro Papa. É como dizem: o futuro a Deus pertence ...
Na ordem de parada na linha do tempo, cada um retornou à sua época, guardando esse episódio como um sonho fantástico e nebuloso, ou coisa assim. Mas no íntimo, todos tinham a consciência de quanto os seus atos poderiam afetar o mundo futuro, e estavam prontos a fazer sacrifícios, se fosse necessário. O caminho para a mudança estava aberto.
Por fim, ficaram apenas Porphire e os integrantes da Sociedade de Futurologia de Londres. A sala agora parecia ampla, e não apinhada de gente como antes. Havia quadros interessantes na parede, que no entanto não combinavam com a época. Ao que soube Porphire, eram presentes valiosos de gente que já tinha topado com aquela insólita confraria de futurologistas.
Wells, que observava o convidado, quebrou o silêncio.
- E então, senhor Porphire, já está convencido da época em que estamos?
- Vou saber quando voltar, se voltar, não é mesmo? Se eu chegar em Mistral e estiver perambulando sem rumo na Zona Boêmia, terá sido um sonho muito estranho. – avaliou novamente a situação e riu.
- O que foi? – indagou Wells.
- Nada, nada ... É que eu devia ter desconfiado: para uma mulher bonita como aquela pular no meu colo sem mais nem menos, alguma coisa tinha que dar errado ...


A porta do camarim abriu bruscamente e Porphire despertou assustado, quase caindo da poltrona.
- O que foi?
- Cinco minutos! – disse a mulher, que parecia conhecida, mas tinha um certo ar de sobriedade que afastava a lembrança. Ela ia fechando a porta, quando Porphire perguntou.
- Cinco minutos para quê?
- Para o show, é claro. E a casa está cheia hoje! – disse a moça, parando para observar o astro da música. – Você não andou bebendo, não é?
- Eu!? Não, hoje não! – a moça ia saindo novamente, quando Porphire disparou. – Você é Hanna, não é?
- Sou, e você sabe ...
- Quer casar comigo? – disse Porphire, num pulo.
- De novo, Porphire? Não faz nem um mês desde que nos casamos! – ela olhou novamente para o marido, que parecia confuso, mas feliz. – Sabe, você é surpreendente! – deu-lhe um beijo e saiu.


No corredor até o palco, Porphire não reconhecia bem as coisas, mas se sentia intimamente satisfeito, afinal era um astro, e muito bem casado.
Antes do último passo, já ouvia o público gritar seu nome. Um jovem, com ares aristocráticos e uma roupa à moda antiga, entregou-lhe uma carta, e sumiu na névoa. Porphire abriu lentamente o envelope e, por um momento, esqueceu da entrada no palco. Era um bilhete curto, com a letra bem cuidada.
- Parabéns, senhor Porphire, nós conseguimos. Cante uma canção para mim. Abraços, Jules Verne.
“Há! Essa é boa!”, pensou, enquanto entrava no palco sob uma chuva de aplausos.
- Boa noite! Esse é um show muito especial para mim, e vou começar com uma canção em homenagem ao meu amigo Verne e a todo o pessoal da Sociedade de Futurologia de Londres – onde, e quando, quer que estejam! É um clássico, de John Lennon: “Imagine”.



(Parte do livro "Viajante Noturno", de William Mendonça, disponível para download gratuito no site www.williammendonca.com. Direitos reservados.)

 
   
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