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TRECHO DE "A VOZ DO OCEANO"

TRECHO DE "A VOZ DO OCEANO"

Roberto Schima

A fúria chegou durante a madrugada.
Não se poderia dizer que deixara de dar seus avisos, pois dera. Contudo, o que poderia ser feito além da espera resignada ou, simplesmente, ignorada?
Tio Zaroio estava certo na sua experiência de vida de décadas como homem do mar, embora errasse na intensidade.
Um erro e tanto.
Não era somente uma chuva.
A tempestade veio sorrateira e súbita. Rolara volumosa e sinistra sobre o mar às escuras, denunciando-se pelos clarões dos raios entre as nuvens. Logo, os trovões fizeram-se ouvir como arautos do fim do mundo. As ondas tornaram-se maiores, mais rudes e mais próximas.
A "Voz do Oceano", conforme chamara D. Maria da Graça certa feita.
E o vendaval avançou em intermináveis açoites, chacoalhando os coqueirais e chapéus-de-sol, fustigando tudo em seu caminho.
Foi aterrador, como se um pesadelo saísse dos sonhos e desabasse sobre a terra.
O barraco todo sacolejava. Dava a impressão de que a cobertura seria arrancada a qualquer momento por uma mão gigantesca e enraivecida. Podia-se ouvir o rugir da ventania lá fora e até a ira das ondas a chegar com a maré alta. A areia arranhava de forma abrasiva as tábuas das paredes. Toalhas e roupas penduradas esvoaçaram. Um copo de vidro espatifou-se ao pé da pia. Livros caíram. Janelas estremeceram. O mundo enorme, familiar e acolhedor de lá de fora tornara-se subitamente desconhecido e perverso.
D. Maria da Graça quis gritar e chorar, entretanto, engoliu o choro e o grito, abraçada ao menino assustado, procurando confortá-lo. Já presenciara outros temporais, e, todas as vezes, tremera de medo. Odiava aquilo. Como odiava aquilo! Aquele temporal, porém, era de longe o pior de todos. Dava a impressão de que, a qualquer momento, iria arrebentar a porta e as janelas, e invadir a sua casa. Ah, como ela desejava viver na cidade, em uma casa quentinha e segura de tijolos, janelas de veneziana, com um quarto, uma cozinha e uma sala de verdade! Sim, sim, sim! Longe do mar, de sua força, de seus mistérios e de seus medos; longe do oceano que, todos os dias, deixava-a apreensiva quanto a segurança da família.
- Mané! - gemeu ela baixinho, junto a um trovão. - Mané!
Misericórdia, como estaria o marido no frágil barco em meio à ferocidade do oceano?
- Mané...
A noite foi longa, muito longa, um sonho ruim do qual não se conseguia despertar.
E o vendaval gritava em descompasso com as ondas. Um coral medonho de um milhão de vozes.
Ratinho tremia, encolhido junto à mãe. Amava o mar, todavia, nesses momentos, perguntava-se o porquê dele ter se zangado e por que se sentia bem fazendo a infelicidade dos outros. Seria ele infeliz? Talvez fosse por causa da imundície atirada em suas águas pelas pessoas, pelas cidades, pelas fábricas, pelos navios. "Não temos culpa!", berrou em pensamento, referindo-se a si e a D. Maria da Graça. Era como destruir todo um formigueiro por causa da picada de uma única formiga. Não fazia sentido. Bem, para ser sincero, muita coisa não fazia sentido no pequeno grande mundo de Ratinho.
Diante de seus olhos assustados, recordou-se rapidamente de outro episódio, ocorrido meses atrás: uma dissertação do vigário Lisboa em uma rara visita à capelinha da vila. Fora construída diante de um promontório, toda branca e encimada por um crucifixo de madeira. Ele falara sobre Noé, a arca e o Dilúvio. O clérigo era um homem forte de um metro e noventa - um gigante intimidador para Ratinho -, têmporas grisalhas e vozerio de trovão. Falara aos pescadores, artesãos e comerciantes sobre fé, reverência e submissão. Falara sobre os pecados da humanidade e a ira do Senhor. De todo o palavrório, o que talvez mais tenha surpreendido o menino não fora tanto o fato de Noé haver conseguido acolher em sua arca - palavra que Ratinho estranhara, afinal, arca era coisa de tesouros e piratas - um casal de cada espécie dos muitos milhares existentes pelo mundo. Isso, por si, já abrigaria uma série de "senões" da parte dele: Como couberam? Como Noé e sua família conseguiram construir tamanho barco? Quem o ensinou a fazer? Quantas árvores foram derrubadas por causa da madeira? Como fizeram os cangurus australianos? E os tamanduás brasileiros? Por que os dinossauros ficaram de fora? Como diferentes animais atravessaram rios, planícies, mares, florestas e desertos? Todos eles sabiam nadar? Como chegaram a tempo e simultaneamente o coelho e a tartaruga? Quem limpava o cocô de todos eles?
"... A terra, porém, estava corrompida diante de Deus, e cheia de violência..." - dissera o vigário. E, num crescente, de braços erguidos para o céu matinal, punhos cerrados, bradara às nuvens e ao imenso oceano estendendo-se a seus pés: "... Porque eis que eu trago o dilúvio sobre a terra, para destruir, de debaixo do céu, toda a carne em que há espírito de vida; tudo o que há na terra expirará..."
Ratinho olhara para o lado e reparara em uma mãe com seus muitos filhos pequenos, um deles ainda no colo, dormindo. Ela acenava com a cabeça afirmativa e fervorosamente. Todavia, Ratinho atentara-se as crianças, especialmente ao bebê. Pensara no Deus irado com a violência dos homens e que, por isso, puniria a humanidade. Mas, e as crianças? O que elas teriam feito para serem sacrificadas se nem consciência do pecado possuíam? Combater a violência com uma violência infinitamente maior? Isso o intrigara, entretanto, nem isso fora o que mais surpreendera o filho de pescador, apesar da enormidade do horror representado.
Não.
O que mais deixara Ratinho admirado - senão chocado -, fora o gesto de Deus em eliminar os incontáveis milhões de membros daquelas espécies animais cujos casais obtiveram refúgio na arca, e que permaneceram do lado de fora. Sem mencionar toda a flora.
"... Porque, passados ainda sete dias, farei chover sobre a terra quarenta dias e quarenta noites, e exterminarei da face da terra todas as criaturas que fiz..."
Todas as criaturas.
TODAS as criaturas...
E por quê? Por causa de erros atribuídos a determinados indivíduos ou grupos de uma única espécie - a humana, feita, segundo a maior presunção dela própria, a Sua imagem e semelhança -, e a qual, ironicamente, tivera o privilégio de ver salvo mais do que um único par, uma família inteira. Não poderia ter Deus - "todo poderoso", não? - castigado somente os pecadores? Por que punir a tudo e a todos indiscriminadamente?
Ratinho não compreendera.
Não negar o milagre de um fato, não condizia com ignorar a arbitrariedade do ato.
Ratinho ficara imaginando e se perguntando como seria Deus, se Ele não fosse uma divindade de amor e compaixão... Tentara traduzir suas dúvidas em palavras, contudo, mesmo que o conseguisse, não teria encontrado coragem de enfrentar à fúria do gigantesco vigário Lisboa e, muito menos, a ira de Deus.
"Não temos culpa!", repetiu. "Não temos culpa!"
E um milhão de vozes continuou a rugir noite adentro.


NOTA DO AUTOR:
Para maiores informações, inserir meu nome ou "A Voz do Oceano" no Google.
http://marcianoscomonocinema.blogspot.com/search/label/Roberto%20Schima

 
   
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