Efuturo: SONÂMBULA - NOITE DE TREVAS/ Coleção Contos

SONÂMBULA - NOITE DE TREVAS/ Coleção Contos

A noite não era mais a mesma da noite anterior. Do céu enfeitado com uma lua brilhante. Agora as torrentes de água escorriam pelas vidraças da janela do quarto com tanta força que sentia que poderiam quebrar. Os chicotes de ventos que faziam os galhos mais leves baterem uns nos outros zunindo sem parar e parecia que aquele barulho de tempestade duraria a noite inteira.
Deitada de bruços com o travesseiro sobre a cabeça pensava em como tudo aquilo tinha acontecido. Um silêncio só em sua mente fazia o jazi de coisas que ficaram no outro quarto. Seu mundo tinha desabado de um momento para outro e tão depressa as coisas tomavam formas sem que ninguém pudesse reformular.
A noite parecia tão mais escura do que as outras e seu receio continuava tão forte como antes. Sem muito que fazer e com medo de atravessar a porta para o outro quarto e olhar tudo novamente, ficou parada quase congelada pelo frio e pelo pavor que consumia seu interior. Sua carne tremia, seus joelhos pulavam e seus olhos não acreditavam.
Aquela voz que todo o dia escutava não mais ouviria. O carinho que as mantinham não mais poderia conter.
Uma vida de harmonia, às vezes ambígua e por vezes bem confusa. Não haveria motivo para a mamãe fazer tamanha atrocidade. Bom, pelo menos havia uma chance de provar o contrário, ainda acreditava que havia um milagre de que seus olhos não tinham visto aquilo e que por algum motivo estressante viu algo imaginário. Lembrando-se do dia que pegou a chave na mesinha da tevê abriu a porta e saiu quando seu tio acordou—a no meio da reserva que se estendia ali perto da casa. Foi confirmado pelos médicos psiquiátricos que ela sofria de sonambulismo e poderia ser tratada, mas a parte psicocerebral afetaria se um trauma interrompesse o tratamento. Tudo aquilo poderia ser um teste.
A vida longe das missas era a continuação do sermão dado na semana anterior e tudo aquilo refletia no dia a dia da família, embora Jasmine pudesse chamar de família.
Jasmine e a mãe Claire foram morar com o tio depois do acidente de avião que o pai pilotava. Embora tivessem uma bela casa no centro oeste o tio lamentava a perda do irmão e implorou para que as duas fossem morar com ele a poucos quilômetros dali. Sua mãe voltaria para a casa se quisesse. Apesar de não querer se deixar levar pelos conceitos do cunhado, abraçou bem a ideia de que ele era um religioso de nascimento e isso poderia influenciar Jasmine para sua vida espiritual. – A vida fora da igreja e agora sem o pai poderia criar uma atmosfera de negatividade e abrir caminho para o adversário – disse o padre. Pensou lembrando-se de suas palavras. Estas foram exatamente às palavras que seu tio tinha dito no dia do funeral.
Não havia muito tempo desde que viu a mãe chorar a perda de seu pai. Mas, já tinha se passado três anos cinco meses e seis dias.
Remexia novamente naqueles relatórios que a companhia a mandou pelo correio há algum tempo e nada entrava em sua cabeça. Os pedidos registrados não apontava nenhuma manutenção precisa em nenhum momento e os danos que a aeronave sofrera compilava para a sua mais dura e cruel dúvida. Assassinato.
Por um momento quis enfrentar seu medo e sair daquele quarto que a prendia por mais de oito horas.
A noite era intensa e o seu medo também. Mas, iria sair e ir agora atravessar aquela porta e olhar tudo novamente.
Olhou mais uma vez pela janela para olhar a tempestade e o que viu foi apenas o seu próprio reflexo que emanava de fora um rosto pouco moldurado de uma garota de quatorze anos. Olhos vermelhos e inchados.
Encostou o rosto no vidro por ter ouvido um barulho lá fora. Apagou a luz para tirar o reflexo e apertou os olhos. Com as mãos feitas pequenas conchas sobre as sobrancelhas. Viu os floristas que chegavam com a coroa de lírios.
A escuridão do lado de fora era a mesma de sua alma e a lembrança árdua de esperar o alvorecer para enterrar sua pobre mãe querida.
Deu alguns passos para trás recuando o que de fato tinha visto e percebeu que não era um teste nem mais um sonho perturbador. Era real.
Saiu apressadamente de onde estava e foi em direção à porta encostando-se à maçaneta para girar. Abriu lentamente e atravessou indo para o quarto de sua mãe que ficava no fim do corredor à esquerda.
Na própria casa havia uma cena de crime. De um lado a outro uma fita amarela colocada pela polícia dizendo para não ultrapassar. Mas, alguém já tinha entrado porque a fita estava meio pendurada ou a cola era muito ruim. Todo o local foi demarcado com placas, isto Jasmine viu já quando abriu devagar deixando a fita suspensa do outro lado. Olhou mais uma vez para ver se não havia ninguém por perto e resolveu entrar. Teria que tomar cuidado para não adulterar as cenas e os locais que previamente foram examinadas. Começou olhar desde o início e percebeu então que tinha sete demarcações. Como se houvesse uma corrente que a levasse para um inferno de provações. Entre as cenas quatro e cinco havia algo similar como se a pessoa tivesse sido arrastada. Ela era bem observadora. Então Jasmine ficou mais assustada porque se a mãe dela foi arrastada não poderia ser suicídio. A corda ainda estava pendurada no caibro em cima da cama. A casa era feita de alvenaria com telhas de barro sem laje. Mas alta o suficiente para ventilar. Mas, tinha se esquecido de que só tinha quatorze anos e não entendia nada de cenas de homicídios. Só uma coisa ela entendia, que sua mãe jamais tiraria sua própria vida. Talvez levasse um tempo para acreditar, mas mesmo assim lutaria contra todos em sua opinião. Não existiam motivos para que Claire tirasse sua vida ela provavelmente pensaria em sua filha e não só por este motivo, mas porque sabia que era o único pecado imperdoável.
Nada fazia sentido e parece que ninguém percebia. Só ela. Observou tudo com muito cuidado aquela noite, apagou a luz e saiu para voltar para o seu quarto.
Fechou a porta bem devagar e puxou a fita prendendo—a na outra extremidade do batente.
— O que você fez?
Aquela voz na sua costa soou tão forte no meio da noite que ela levou um susto ao virar-se e ver seu tio.
— Desculpe. Eu só queria olhar...
— Não peça desculpas. Quando o funeral acabar quero que se confesse e fale tudo que viu.
Seu tio falava tão baixo que quase não dava para ouvi-lo de perto, mas uma mão levantava diante de seu rosto e ela fez que sim com a cabeça saindo em seguida.
Jasmine foi aos passos largos e apressados no meio de um corredor escuro apalpando as paredes até chegar ao seu quarto ainda assustada com a presença do tio. Já era quase cinco e logo ia amanhecer, mas antes disso seu coração batia tão forte que não queria só voltar para o quarto e sim sair pra fora. Toda aquela casa estava assustadora demais. Saiu do corredor que estava e passou pela sala extensa que seu tio tinha feito só para guardar e pendurar quadros religiosos. Pilhas de livros e caixas e artigos de religião com anjos e estátuas. Todos os lados havia alguma coisa e logo adiante viu o que mais frustrava a coroa que seu tio levaria em trinta minutos no máximo para a capela onde sua mãe ia ser velada.
A capela da igreja era ao lado da casa com uma igreja pequena e o cemitério da cidade ficava um pouco mais adiante. Seu estômago doeu e sentiu uma forte náusea.
Por mais que parecia um suicídio sua mãe ficou aos cuidados do legista por mais de quinze horas, depois algumas mulheres da igreja em consideração ao padre pediram para arruma-la. Todo esse tempo levou aproximadamente vinte horas para o velório. Só que um detalhe muito intrigante, o médico era um velho amigo do seu tio.
Suas dúvidas jamais seriam esclarecidas. Pelo menos não por aquela fonte.
Todos os dias sua mãe levava ela para a escola, provavelmente seria o tio que iria fazer aquele favor. Ele não gostava de dirigir então não saberia o que ainda pudesse ser feito quanto a isto. Saiu na ponta dos pés depois de fechar levemente a porta da sala. Queria ficar encharcada e saber que estaria sentindo de verdade toda aquela fúria e toda aquela frustração. Não conseguia sentir se tudo era mesmo uma realidade delineada em torno de sua vida e queria provar pra si mesmo que estava errada. Mas, não, não conseguiu provar porque quando saiu imediatamente viu um caixão que certamente colocaram ali recentemente. Olhou e provou sua estupidez de que estava vivendo aquele horror, mas não conseguia aceitar. Aproximou-se do caixão e algumas mulheres e senhores olhavam sobre os ombros como se tudo fosse culpa dela.
O tio estava vindo e ordenou para um menino que levassem a coroa. Ele pegou-a pelo braço gentilmente, mas rosnando em seus ouvidos de que não tivera permissão para sair. O seu consentimento valia muito depois que Claire deixou de existir. Pensou ligeiramente.
Afinal o que ele estava pensando se aquela mulher roxa dentro de um caixão era a mãe dela. Ela tinha todo o direito de vê-la. Embora não quisesse. Bem no fundo do seu coração sentia uma pontada de agonia misturada com raiva. Se fosse suicídio não teria pensado em como ela se sentiria. Como sua vida poderia ser ou como ela poderia viver sem o carinho e amparo. – Nada disso passou pela cabeça dela? Era impossível de acreditar. Saiu para ficar nos beirais do telhado. Preferia molhar na chuva a ficar ali e ser devorada pelos olhos daquelas pessoas.
A noite chuvosa continuava intensa e aquele pesadelo também. O sol parecia temer o alvorecer tanto que aquela noite foi a mais longa de sua vida. Quando olhou no relógio viu que eram cinco e quarenta e nove. Era como se tivesse esperando um portal para engoli-la e acorda-la de um sonho ruim.
Foi estranho de ver como uma pequena ação desastrosa implicava numa vida inteira. Era como mexer numa pilha de dados.
Jasmine andou por toda a parte, não ficou ali parada do lado do caixão. E já sabia onde sua mãe iria ser enterrada mesmo porque seu tio achava que ela não merecia saber já que iria acompanhar o enterro. A lápide nova em folha preenchia um nome novo para uma morada diferente. Desde pequena se entendia bem com a morte. Sabia o que ela significava só não entendia que ela poderia interferir em parte da sua vida. Não agora. Tudo era novo e estava sentindo o sabor dela bem mais cedo do que esperava.
Um nome bonito para um lugar bonito. Só não da forma como fora. Riscado como uma bela gravação ficou um nome a mais para uma lista extensa no velho paraíso.
Ainda era inverno e logo chegaria à primavera. Uma nova estação, uma nova vida, um novo rumo estava quase projetado, mas seu espírito não estava pronto. Parecia que alguma coisa a travava e a única lembrança dolorosa que devia carregar para sempre em sua memória se não fosse aquele capricho da morte, era de uma mulher pendurada numa corda com os olhos estalados como se o que fosse feito não fosse do seu agrado. – Sou culpada? – Por que aquelas pessoas me olhavam daquela maneira? Pensava sem parar, mas não havia respostas.
Suspirou profundamente e ergueu os olhos para o céu e toda aquela torrente de água caía sob seu rosto numa ferocidade que não conseguiu manter por muito tempo e o que viu foi apenas um céu negro debulhando sua ira ou seu afeto. Já nem mais sabia como discernir um carinho de uma violência. Amar ou odiar. Andar ou recuar.
Caminhou lentamente para onde estava sua mãe e resolveu que ia ficar ao lado dela até fechar para sempre aquela caixa que separava dela o seu mundo.
As pessoas da igreja nunca foram tão hostis. Nunca em sua vida sentiu que um simples olhar pudesse machuca-la. E ela não entendia a causa daquela revolta que aquelas pessoas deixavam escapar pelos olhos. Seu tio olhava-a da mesma forma e ela queria desaparecer dali com aquele maldito caixão. – Será que só ela sentia isso? – E só porque era ainda praticamente uma menina, sua mãe não aguentou suas petulâncias? Pensava ferozmente por dentro, mas queria gritar, berrar para todos que sua agonia era talvez mais imensa do que todos poderiam sentir. E permaneceu ali com aqueles olhares severos até que os primeiros raios de sol começaram a surgir num céu azul. A chuva estava demasiadamente leve e finalmente um calor misturado com cheiro de barro exalou da terra e ela sentiu que estava viva e forte para enfrentar quem quer que fosse.
Eram seis horas da manhã e o enterro tinha ficado para as oito horas. Já havia passado muito tempo desde que tudo aconteceu, então não tinha muito tempo para vela-la. Algumas pessoas saíram tomar café e outras continuaram ali como uma doença olhando e reparando qualquer movimento. Seu tio estava entre a porta conversando com alguns senhores e ela olhava fixamente para a imagem gélida que estava a sua frente. Pela primeira vez sentiu vontade de passar a mão por cima das de sua mãe, toca-la pela última vez. E a sua vontade foi mais forte que uma crise de tosse. Levantou serenamente olhando calmamente e tocou-a. Era fria e dura e uma sensação ruim se apossou como uma amarga intuição. Passou a mão entre os dedos e percebeu uma vermelhidão abaixo da manga comprida, por baixo do punho. Colocaram uma espécie de faixa para cobrir algo. E por cima um vestido azul de manga comprida boca de sino. Com bordados de branco. Ela olhou e uma senhora franzia a testa repreendendo sua atitude de mexer nos mortos. Mas, ela continuou e ergueu um pouco aquela faixa e viu um risco parecido feito de gilete ou alguma coisa cortante. O desenho estava profundo e ela suspendeu mais a mão dura e sem vida para olhar todo o resto.
Seu tio veio rapidamente e ela soltou a mão da mãe que caiu abruptamente pra baixo.
Um bater na porta e logo uma arrancada.
— O que pensa que vai fazer? – Arruinar o resto da reputação dessa família? – Já não foi o bastante para você?
Uma pergunta recíproca atrás da outra como se todas não houvesse respostas.
— Eu vi um desenho no punho dela...
— Não existe nada na qual você tenha dito. Aquilo é só parte da autópsia, nada mais. Acho melhor você ir somente as oito, tome um café e depois se comporte. Temos muito que conversar.
Ele saiu dando as costas com ela ainda falando alguma coisa.
O desenho aparentemente realmente podia ser os cortes devido à autópsia, ou antes, de ser pendurada. Talvez a mãe dela tentasse suicídio antes e ela não sabia.
A vida tinha moldado agora um mundo desconhecido na qual ela teria que ir descobrindo cada dia. Um dia por vez para ser suficientemente entendida de que agora estava sozinha.
A paciência requer virtude e a virtude um benefício contra qualquer mal.
Tinha aprendido muitas coisas boas, mas também muitas coisas ruins. A vida de afeto que todos viam nas missas nem sempre era reflexo de uma verdade. Porque sua vida resumia em regras de silêncio e confissões de abusos que determinavam serem valores sagrados para o lar de um padre.
As amigas sempre era um tropeço e raramente aparecia com uma colega de escola para os deveres de casa. A calça jeans tivera que abandonar e as maquiagens também. Era insuportável todo aquele dilema de ser certinha porque todas as meninas da igreja usavam jeans. Parece que tinha abandonado a sua juventude e fora morar com um louco vestido de padre. E era motejado de ver como as pessoas acreditavam em tudo e até batiam continências.
Seu mundo estava desmoronado porque não tinha pra onde ir, o único jeito era tentar fazer o possível para as coisas engrenarem já que sua mãe desistiu de tudo isso.
As pessoas começaram a se juntar e seu tio fez sinal de que ela era pra ir se despedir pela última vez de sua mãe, logo fechariam o caixão. As pernas meio bambas seguiram em direção ao caixão que parecia mais alto do que no início. Seus olhos procuraram as mãos dela que ficaram como um leque fechado por cima do peito. Mas, sentiu um medo estranho quando se aproximou. Um medo inexplicável de que quando fechassem partiriam o seu mundo em mil e sentia bem de perto o espírito da morte que a rodeava e ela sentia um frio muito forte na nuca que se cambaleou perto do caixão e seu tio a segurou para não desmoronar.
Tudo ficou num segundo do passado, agora era de verdade uma nova vida. O último botão de rosa posta em cima do caixão quando a fechou e dela o seu mundo separar. Nada mais sentiria, tudo estava ficando neutro. O sangue esfriando, a cabeça parando de rodar, as ânsias diminuindo, as poucas lembranças da noite anterior, só um martelar acelerado dentro do peito. A solidão, a irrealidade, o desconhecido sabor que projetava em sua língua, um gosto estranho de sangue que surgiu tão rápido em seu paladar. A ausente sensatez de perda ou dor. Uma vida vazia como um recomeço. Como se tivesse voltado ao cordão umbilical. Sugando toda a proteína e se alimentando de tudo que fosse necessário para ser forte até se sentir satisfeita.
Seus passos de volta pra casa depois do enterro foram leves como se aquele túmulo tivesse tirado dela todo o peso que sentia. Uma sensação misteriosa, uma reação adversa que sua mente desconhecia.
Seu tio passou a mão em sua cabeça e pediu para ir.
Seus olhos se baixaram para dar um novo passo de volta pra casa, seu coração batia desconcertado, mas aqueles passos de seu regresso eram um novo caminho projetado secretamente só em sua alma.
Porque, no fundo de sua alma sabia que tinha matado seus pais.