Efuturo: NÃO ESQUECIDO POR DEUS

NÃO ESQUECIDO POR DEUS

NÃO ESQUECIDO POR DEUS

Roberto Schima


A tarde caía espessa e silenciosa feito um sopro ao apagar uma vela.
A Morte vagava a esmo pela floresta fria e úmida. Suas vestes em andrajos fundiam-se ao denso nevoeiro, tornando-o mais escuro. Algo a atraíra para aquele lugar esquecido por Deus, mas o que seria?
Vagou por pântanos e charcos. E tudo silenciava a sua passagem. Quando tocava em alguma árvore, esta, imediatamente, perdia suas folhas, ressecava e transformava-se numa caricatura tétrica de garras apontadas para o céu.
Subitamente, a Morte ouviu algo. Vinha de lá adiante, atrás de um enorme carvalho, o qual era somente um vulto sombrio e imponente.
Caminhou para lá sem pressa, em seus passos de morte que mal tocavam o chão.
Então, atrás do tronco retorcido, coberto por líquens e musgos, avistou.
Era um recém-nascido. Fruto de um amor proibido, fora deixado ali para perecer.
Observou a figurinha miúda.
Nada surpreendente, vindo de um mundo onde as pessoas atiravam bebês no lixo, jogavam-nos do alto de edifícios ou despedaçavam-nos durante as guerras. Vira exemplos de sobra do quanto se sentia desnecessária, enquanto havia tanta gente disposta a cumprir o papel que lhe pertencia. A humanidade sempre tão disposta a dedicar à Morte milhares e milhares de oferendas fosse através do punho de uma espada ou da ponta de uma baioneta.
O único gesto de piedade fora o de envolver a criança em um cobertor. Era azul e tinha estrelas amarelas. Pobre imitação de um céu noturno que aquele bebê não conheceria.
A Morte aproximou-se, pronta a cumprir àquilo que era a razão de seu existir: privar a existência alheia.
Tão simples.
Tão fácil.
Estendeu seus braços descarnados para o recém-nascido. Ao menor toque de seus dedos, a vida esvair-se-ia feito água a escoar por um ralo. Exalou o hálito fétido e gélido do eterno sorriso de suas mandíbulas.
"Venha..."
Inesperadamente, o bebê deixou de chorar e abriu seus olhos.
As mãos da Morte estacaram a poucos centímetros do rosto rosado. E o que fez a criança a seguir deixou a Morte de queixo caído: sorriu-lhe.
Ali estava a personificação da pureza. Era só entrega, sem nenhum temor. Era só esperança sem nada pedir em troca. Era o alento que nada temia, sequer a própria morte. E a ela oferecia-se mediante um sorriso de quem nada tinha a oferecer e, tampouco, a perder. Tanto era assim que estendeu seus bracinhos magros de encontro ao par de mãos descarnado.
Em vez de agarrá-la imediatamente, a Morte recolheu seus braços, petrificada.
Muitos gritaram.
Muitos choraram.
Muitos desesperaram.
Todos se arrependeram.
Mas quantos haviam-lhe sorrido?
Nenhum.
E, em seu interior estéril, escuro e gelado, algo ocorreu. Algo... acendeu.
E a Morte, a grande ceifadora da vida, apanhou o bebê pelo cobertor, evitando tocar-lhe diretamente na carne macia e morna.
E a criança flutuou para longe da mata, do pântano, da bruma e do frio penetrante.
Distante dali, uma campainha tocou.
A mulher rechonchuda saiu de trás de sua mesinha a poucos metros e foi atender.
Sentiu o ar frio e um odor pungente de algo ruim. Torceu o nariz. Tossiu. Abraçou-se ante o calafrio que a dominara.
Olhou ao redor e nada percebeu ou ouviu.
Seria impossível alguém tocar a campainha e sair correndo sem ser visto. A área era grande e não haveria tempo de esconder-se.
Tais divagações logo tiveram fim ao reparar no pequeno embrulho a seus pés e seu valioso conteúdo. Isso sim, era-lhe uma cena familiar. Afastou as cobertas e admirou o rostinho de joelho e os olhos brilhantes. Mãos pequeninas imediatamente agarraram-lhe o dedo.
E o bebê sorria.
E a mulher levou-o para dentro, fechando a porta alta e branca. Sobre ela, a placa dizia: "Orfanato..."
E a Morte, um pouco mais além, viu a porta se fechar.
"Vá!"
E afastou-se daquele lugar repleto de vida e, sobretudo, de esperança, fundindo-se à escuridão no apagar de uma chama.
A noite chegou de mansinho.
Inúmeras estrelas cintilaram no céu.
E uma floresta fria, úmida e apavorante, de um modo estranho e inesperado, revelou-se um lugar não esquecido por Deus.





Pequena biografia:
Roberto Schima.
Nasci na cidade de São Paulo em 01/02/1961, o que agora me parece muito distante. Passei a infância imerso nos anos 60, período de várias transformações. Tive a felicidade de sentir o clima de entusiasmo em relação a "Conquista do Espaço" que hoje não existe mais - não obstante a Guerra Fria. Escrevi "Como a Neve de Maio" ("Isaac Asimov Magazine" nº 12, Ed. Record), "Limbographia" (Amazon, Clube de Autores, agBook), "O Olhar de Hirosaki" (Clube de Autores, agBook), "Os Fantasmas de Vênus" (Amazon, Clube de Autores, agBook) etc. Participo da revista digital "Conexão Literatura", de Ademir Pascale, desde sua edição nº 37.

Informações: Google, Clube de Autores, agBook, Amazon ou nos links abaixo:
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