Efuturo: SONHOS DO PASSAGEIRO XIS

SONHOS DO PASSAGEIRO XIS

No meio da chuva que isolou um ônibus público no bairro do Jardim Botânico na cidade do Rio de Janeiro, o passageiro Miguel, enquanto esperava o socorro, deita-se no banco de trás e sonha os mesmos sonhos encadeados que enchem todos os coletivos de criaturas. Criaturas com começo, meio e fim.
Aparece na cabeça de Miguel, o locutor de um programa de entrevistas apresentando o seu convidado:

- Nós temos aqui o Zacarias. Ele gostaria de oferecer aos telespectadores um depoimento sobre a sua vida promíscua.... Ele diz que este depoimento pode ajudá-lo a encontrar um equilíbrio emocional.

O Zacarias surge de perfil na cabeça de Miguel e quase chorando diz:

- Eu estou me sentindo muito mal nestes últimos meses porque eu era um sujeito tranquilo, casado há muitos anos com a mesma mulher... ela era uma mulher normal, mas aconteceu... um dia nos separamos para sempre, de forma cruel até hoje e depois disto... em função da minha soltura...passei a copular aos sábados e sempre com alguma mulher diferente...não são putas... foi a japonesa do armazém perto de casa... uma loira que me viu no cinema... a caixa do banco, a empregada da padaria, qualquer uma... me procura no meio de um passeio e quando agrada... eu facilito o sexo... O problema é depois do encontro... eu me sinto sujo e infiel. Esta sensação vai até quarta-feira quando o meu crime some e ajeito a cópula seguinte com alguma outra mulher...
- Porque você se expressa desta forma rebuscada, usando a palavra... copular?
- Faz eu me sentir menos triste...porque todo o meu mal estar vem da fidelidade que ainda devo a minha ex-esposa e ao mesmo tempo por acreditar nas cópulas dos sábados. Por alguma razão, irão trazer o meu amor de volta ou despertarão o seu arrependimento pelo marido perdido.

O locutor muda o foco e chama outra pessoa.

- Nós temos aqui uma mulher, Dona Sílvia. Ela não é a ex-esposa do senhor Zacarias. Está aqui porque também gostaria de contar a sua história

Dona Sílvia aparece na luz para explicar:

- O meu mal-estar é diferente. Eu fui casada por muitos anos com meu marido tranquilo e fiel. Homem bom, carinhoso, companheiro. Tão tranquilo e engordou demais...mesmo assim ele ficou lindo. Não sei porque começamos a brigar por tudo. De repente...foi minha culpa...Não se briga por causa do pó de café derramado na mesa. Assuntos absurdos.... a janela aberta faz a luz do sol esquentar a cristaleira da minha avó. Briguei porque ele não tinha consideração com minha avó. Um dia o Francisco, meu marido, não suportou e nos separamos. Ele foi morar na casa de um amigo e, por muitos meses, aquele homem tranquilo passou a ser um verdadeiro libertino. Levar uma vida libertina, ter muitas mulheres e eu sabia de tudo porque elas ligavam para mim perguntando por ele e um dia...eu fui xingada por uma delas. Ela me xingou e começou a chorar, pedir desculpas porque achava estar diante de outra vítima da tapeação daquele homem. Foram meses em que perguntei, quem ele era, com quem eu casara... Eu me casei com quem? Quem jurou algo em frente ao padre? Ele tinha outro cheiro? Foi uma dor profunda de não querer sair do elevador do prédio. Um dia aconteceu de reatarmos, de voltarmos. No começo foi difícil... receber na cama um homem com a casca de tantas mulheres. Eu consegui superar, mas agora um incômodo vem se acentuando... meu marido voltou a ser um homem fiel. Um bom pai, carinhoso, totalmente tranquilo. Desculpem a incoerência. Eu não suporto a presença dele...
Miguel no meio da chuva, dentro do ônibus, ri pelo andamento do sonho, ali mesmo o locutor prossegue:

- Aqui também o depoimento do senhor Haroldo. Ainda mais complexo.

O Haroldo nem aparece:

- Eu poderia nem falar já que estou preso. Eu sou o homem tranquilo e fiel. O tal pai atento, olho meus filhos crescendo, vislumbro a harmonia ao meu redor e ainda assim penso, como seria bom, se eu fosse um homem promíscuo, cercado por mulheres confusas.

O apresentador interrompe e diz:

- O nome disto tudo que vocês ouviram é angústia humana.

Miguel acorda tossindo diante da certeza do imaginário. Pouco depois o primeiro barco de resgate toca a lateral do ônibus, passa carregado de náufragos.




DO LIVRO: CHUVAS NO JARDIM BOTÂNICO