Efuturo: O JUIZ (do livro O JUIZ E OUTROS CONTOS)

O JUIZ (do livro O JUIZ E OUTROS CONTOS)

o juiz




DE tanto os aldeões desejarem a elevação do lugarejo a Município e Comarca e graças aos encantos, poções e caldos mágicos vertidos no rio represado, em forma de dejetos fecais, um dia, na fontezinha da praça local, materializou-se do nada uma substância invisível e palpável que, com o tempo, recebendo configuração humana, transformou-se num juiz togado para o arraial.
Pelo vendaval que assolava a cidadezinha ao entardecer, percebia-se sua passagem entre as velhas árvores do jardim.
À tardinha, aquela névoa (que, devagar, foi se tornando cada vez mais densa) passeava pela praça sobraçando um grosso volume de capa negra onde anotava coisas que ninguém jamais conseguiu ler.
Sua cabeleira postiça francesa, de cachos encaracolados, imperceptivelmente tornada visível, lembrava os senhores de escravos das gravuras de Debret e seus sapatos, que chiavam como botinas novas, possuíam saltos estilo Luiz XV e eram delicados como murros de mentira.
Apesar da austeridade de seu porte, quando tomou posse de seu fictício cargo -após materializar-se de vez-, sua barba ruiva encrespada e seu olhar semi-vesgo lembravam um auto-retrato de Van Gogh de chapéu.
Surgia pouco antes do pôr-do-sol e desaparecia logo após o sol posto, quando, no horizonte, as nuvens se tingiam dum escarlate gotejante cada vez mais escuro. Nesses raros momentos as crianças, às vezes, o cercavam e dele recebiam uma infinidade de lições práticas para a vida... Nesse raro tempo ele contava coisas de uma família que tivera, filhas folientas, divertidas, dadas a festas e à curtição de faixas sonoras, filhos pescadores e esposa decifrática, enigmística e cabalística...
As outras pessoas dedicavam-lhe a mínima atenção. Naquela época os afazeres e fainas diários não eram feitos automaticamente pelas máquinas: porisso, diziam, não tinham tempo para ele...
E ele foi se adaptando em nosso meio, com aquela solidão própria das pessoas sem serventia e agastadas pelo desuso...
E, como todo só, vivia curtindo uma saudade baiana e outra carioca, netos impossíveis e vontades de fugir - outra vez - para o nada...
Dizia-nos que a todos enxergava transparentes como ele próprio fora, porém com espaços opacos como o das radiografias, segundo ele, nossos sentimentos impuros.
Nas flores arrefecidas do jardim, soprava um hálito fertilizante que as renovava instantaneamente. Às vezes, apanhava uma rosa ou outra flor qualquer e ia despetalando-a sem maiores explicações.
Gostava de pedir fitas mini-cassete virgens -emprestadas- (que não devolvia!) e garantia ter um aparelho a pilhas com que gravava, pra não se esquecer, (nessa ordem) o canto dos pássaros, o riso dos garotos chegando, a canção da brisa assoviada entre as árvores e o murmúrio - que só ele ouvia - da noite caindo.
Tinha especial predileção por uma canção fúnebre de discutível bom-gosto.
Com os anos, perdido o aspecto de fantasma que lhe conferia toda a originalidade, o perscrutador dos recônditos anseios e sentimentos da população foi relegado ao esquecimento.
Quando aparecia, diziam, era pra incomodar... Principalmente quando, sem querer ser moralista, fazia investigações sorumbáticas em seu livro iniciático e encetava investidas lógicas a favor dos bons costumes que, naqueles dias, desandavam para o deboche e o relaxo total, devido ao aparecimento de um invento diabólico chamado “Aparelho Lúdico-Sensual”... Nessas pregações, verdadeiros sermões de Vieira, usava princípios práticos e salutares de envolvimento emocional que os irreverentes taxaram de afeminação. Quando soube, ele sentiu triste tristeza tristezante e tristou de vez... Mas passou.
Então, após amealhar argumentos irrefutáveis, convocou as crianças para o seu primeiro julgamento. Alvoroço no arraial...
Numa grande tela panorâmica formada de nuvens de médio porte e armada sobre a serra que dentilha o horizonte do lugar pelas bandas a nordeste, elas assistiram como que a um filme onde, num cenário que sugeria uma sala de Júri, os adultos hipócritas ocupavam o banco dos réus.
Soberbos, nem apresentaram defesa. Foram julgados à revelia e condenados.
Os visados -aquilo era uma indireta- encararam o fato (após assistirem clandestinamente à projeção) como uma farsa, uma brincadeira de mal-gosto.
Mas, desse dia em diante, viveram procurando um meio de se livrar do magistrado de meias justas, fixadas com ligas à altura da barriga da perna; daquela “” como diziam...
Nunca souberam que ele participara, na acusação, de todos os julgamentos do tribunal do Santo Ofício.
Se ao menos desconfiassem, não teriam, em represália à comédia da condenação e em repúdio à adesão infantil ao veredicto final, contratado, para dizimar os inocentes, um famoso profissional conhecido como Herodes, o Colecionador...
Os adultos, de tanto ler e reler manuscritos e tratados de Magia Negra, tornaram-se bruxos razoáveis e tanto pesquisaram que, um dia, encontraram a fórmula (exata e única) para eliminar o magistrado.
Nessa época suas barbas e cabelos mais pareciam espumas de algodão cascateando-lhe o peito e os ombros. Por isso, nada mais natural que, no futuro, um talentoso pintor sacro se inspirasse em sua figura, sem chapéu, para fixar a imagem do Criador no teto da nave Central da Igreja Matriz de Coivaras.
Certo domingo, o juiz, de toga e beca, apareceu enforcado na corda do sino de um templo que ainda não existia.
Aqueles que o fizeram, decidiram a própria sorte.
Fiquei sabendo de tudo, ainda no sanatório: ele mesmo mo contou!
Depois da igreja edificada, de vez em quando, de surpresa, os sinos dobram e a aparelhagem de som paroquial leva longe os acordes duma cantiga de réquiem.
Então, quando isso acontece, algum adulto morre e vai se encontrar com ele para o acerto de contas...