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VOVÓ E AS BOLOTAS

VOVÓ E AS BOLOTAS

Roberto Schima

Está uma tarde feia lá fora.
Um cinza escuro passeia pelo céu, tenebroso, enquanto relâmpagos iluminam os edifícios com suas faíscas gigantes. As paredes tremem de medo dos trovões. Confesso que também tremo um pouco, num respeito velado a um poder maior do que minhas forças - e mesmo mais poderoso do que a energia que alimenta a tempesta-de: o poder da memória.
Ouço o tamborilar insistente.
Sim... reconheço o som.
É o mesmo zumbido do passado.
Sorrio.
Gostaria que ela estivesse aqui comigo para observar também.



- As bolotas, Edgar! As bolotas estão caindo! - gritou ela. - Vem ver, menino!
Ouvi a voz rouca a me chamar enquanto estava em meu quarto. Brincava com um caminhão de plástico que fazia passar por uma estrada imaginária, entre prédios de blocos de madeira. Não me levantei de imediato do chão, mais concentrado no trajeto do brinquedo. Eu sabia que estavam caindo. Há algum tempo estava escutando as milhares de batidas simultâneas soarem no telhado. Elas caíam uma atrás da outra, num zumbido contínuo a invadir as paredes desbotadas do quarto, pintadas de um azul-claro tristo-nho. Eu estava convicto de que iriam demorar para parar.
- Vem ver as bolotas! - insistiu vovó. Se havia uma característica em comum entre nós, essa era a teimosia.
Ciente de que ela não iria mudar de idéia enquanto eu não fosse ter consigo, larguei a contragosto o caminhão de plás-tico entre dois edifícios de madeira, no chão de tacos.
- Tô indo! - gritei e corri.
Meus passos ligeiros e curtos soaram pela casa, mas foram encobertos pelo zumbir contínuo lá de fora.
Vovó Jurema encontrava-se na varanda envidraçada. Olhava para o mundo exterior, fascinada. Tinha um brilho infantil nos olhos e, na minha cabeça de criança, pensei comigo como ela pare-cia bonita: um coque prendendo os cabelos, um casaco de lã marrom protegendo-a do frio, um cobertor nas pernas e um bordado deixado de lado. Cheguei até ao seu lado e ela, reparando na minha pre-sença, colocou-me em seu colo. Juntos, balançamos na velha cadei-ra de madeira negra e resistente.
Do outro lado da vidraça, a chuva caía impiedosa naquela tarde enevoada de outono. Rajadas súbitas arrepiavam nossas almas e nos faziam pensar em coisas e em lugares longínquos. A chuva caía do céu e, com ela, as bolotas. Centenas, milhares, milhões delas. Por que vovó tinha lhes dado esse nome, eu nunca soube, ou, se ela o disse para mim, a memória cuidou de apagar.
- É bonito - falei com minha voz minúscula de cinco anos. - Tá em toda parte.
Vovó apenas murmurou um assentimento e continuou a balançar. A madeira estalava monotonamente, um nhec-nhec gostoso de se escutar.
Voltei minha atenção novamente para o que estava aconte-cendo lá fora.
Era um espetáculo muito bonito, bonito de verdade; uma daquelas raras cenas a ficar para sempre na lembrança por mais que os anos corressem diante de nós. As bolotas caíam sem parar do céu, pulando em direções várias, deixando tudo branquinho. Mal dava para se enxergar do outro lado da rua. Havia uma alvura no ar por causa da chuva, das gotículas suspensas e das bolotas. Formava uma espécie de barreira, separando uma casa da outra de maneira aná-loga ao espaço a apartar os planetas. De vez em quan-do, uma bolota mais ousada atingia a vidraça, parecendo que iria quebrá-la, mas não quebrava.
- De onde vem as bolotas, vovó?
- De Bolotópolis, Edgar - respondeu numa voz mansa, acompanhada de um esboço de sorriso -, elas vem de Bolotópolis.
- "Botoplis"? - Fiz uma careta de quem nada entendeu.
Vovó riu, voltando seu rosto redondo e grisalho para mim. Repetiu paciente:
- Bolotópolis, Edgar, Bo-lo-tó-po-lis. É uma grande bola branca lá no alto, onde crianças ficam brincando em cima. Atiram pedaços menores umas nas outras e esses pedacinhos acabam caindo aqui embaixo, aqui na terra.
- Deve ter muita criança lá em cima - comentei, admirando as bolotas que persistiam em cair. Eram tantas, que ficava impraticável contá-las. Confundiam-me. Sumiam. Apareciam.
Vovó Jurema tornou a rir. Exibiu seu dente de ouro. Quando calhava de eu o ver, pensava nela como um tipo de robô, que nem daqueles seriados japoneses. Não era uma comparação que a agradasse propriamente.
- Tem sim, Edgar, tem um montão de crianças por lá.
- Como é que elas não caem?
- É que...
- Como é que elas subiram?
Bem, o...
Ah! Deixa eu sair e pegar umas bolotas, vovó, deixa?
Tocando de leve seus dedos nodosos em meus lábios irre-quietos, ela contou:
- Bolotópolis é um lugar mágico onde só as crianças boazinhas vão. Lá, elas podem se divertir à vontade, correr, brincar de amarelinha e muito mais. Mas tem uma condição, Edgar.
- Que é "condição"?
- É uma coisa que se faz obrigada, mesmo que não queira. É um dever, como das vezes que sua mãe te manda lavar as mãos antes de comer. Entendeu?
- Entendi.
- Então. Em Bolotópolis, a condição é a de que as crianças que vão para lá, vão para ficar para sempre, para nunca mais voltar às suas casas e se misturar com as crianças más aqui da terra.
- Eu não sou mau.
- Claro que não, Edgar. Entretanto, nem todas as crian-ças são boazinhas como você.
- Que nem o João - falei, pensando no filho da vizinha. - Ele atira pedra nos cachorros.
- Isso mesmo - confirmou. - Lá em Bolotópolis tem uma fada mágica chamada Bolotéia. É ela quem escolhe as crianças e, com seu poder, faz elas flutuarem até lá no alto, no meio das nuvens. Elas não caem por causa da mágica, nunca poderão cair. E lá ficarão brincando sempre e sempre...
- É por isso que, junto com as bolotas das brincadeiras, a chuva cai - disse eu, pensativo. - Tem criança chorando de saudade de casa.
Ela concordou, admirada.
- Sim... E você não pode sair para pegar as bolotas porque senão vai subir também e nunca mais vai retornar.
Fitei o céu turbulento, a chuva forte e as bolotas que caíam. Senti um tremor brotar pelo corpo todo e abracei seu corpo quente e protetor.
A chuva prosseguiu lá fora, chapinhando na rua e nas calçadas, afogando o jardim, transformando as outras casas em sombras indistintas sobre um pano de fundo cinzento.
Mais tarde, com o Sol crepuscular tingindo tudo de ver-melho, sai para o quintal. Como sempre, havia o odor de frescura no ar, o chão estava molhado e as bolotas haviam sumido. A mágica tinha terminado.
Contente, comecei a pular e a correr pelo quintal. Sem querer, acabei por derrubar um vaso de hortênsias que vovó adora-va. Ela apareceu com uma expressão severa e pressenti que iria me deixar de castigo.
- Seu sapeca, você...
- Se eu for muito bonzinho - falei esperançoso -, eu subo para Botoplis e não volto mais.
Ela não agüentou e me abraçou com força de encontro ao seu peito. Sorri aliviado.
Confesso que nunca fui o melhor dos garotos da rua, todavia, jamais atirei pedras nos cachorros. Disso sempre pude me orgulhar.



Muitos anos se passaram. Há cerca de um ano, vovó Jurema se foi - para "Botóplis" com certeza. A casa em que eu vivia passou por reformas que a tornou irreconhecível. Gostaria de dar uns safanões em seus donos atuais.
Entretanto, a chuva continuou a cair. Eventualmente, as bolotas caíam também, como estão caindo agora, nesta tarde sinis-tra de outono, na sacada de meu apartamento. Há pensamentos de lugares longínquos no ar.
Abro a porta corrediça que dá acesso à sacada e sinto imediatamente o vento agitar meus cabelos, penetrando na sala. A chuva começa a me molhar. Agacho-me e, rapidamente, apanho uma das bolotas. Fecho a porta.
A bolinha branca de gelo reluz molhada na palma da minha mão.
Vovó Jurema havia mentido, descobrira um dia. As bolotas não eram mágicas e nem me levaram para o céu. Porém, eu soube lhe perdoar por este singelo pecado e, de certo modo, conservar a magia de Bolotópolis viva dentro de mim.
Respiro profundamente.
No calor aprisionado do meu lar, a bolota se derrete por entre meus dedos, enquanto as lembranças atravessam minha mente como a chuva a cair inclemente lá fora.


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