Efuturo: LEMBRANÇAS DE MINHA INFÂNCIA

LEMBRANÇAS DE MINHA INFÂNCIA

Missão na Madrugada.

Acordamos cedo àquela dia. Como dormíssemos devidamente vestidos, não precisamos nos preocupar com tais particularidades; faltava-nos apenas as máscaras.

Deslizamos dos lençóis e nos arrastamos para fora de casa. O mundo jazia cinzento, frio e calmo, agourentamente silencioso a espera da aurora, à exceção de um galo se esgoelando ao longe.

Eu e Frango, esguios e magricelas como éramos, nos empertigávamos dentro roupas, discutindo quase em sussurros as táticas do plano enquanto atávamos as máscaras sobre os olhos. Decia, com a cara inchada e os olhos semicerrados à claridade, nos escutava de perto, escancarando simultaneamente a boca em bocejos demorados, mas igualmente excitada pela missão.

Atravessamos a cerca de arame farpado e pulamos para o capim, molhado pelo sereno. Corremos ligeira e cautelosamente para a outra extremidade da cerca, onde de novo, com a casa de Tia Elizene às nossas costas, passamos pelas voltas de armes e caímos na estrada, pálida, seca e deserta. Entrementes demoramos muito pouco nela, uma vez que a casa de Teca, ponto x de nossa missão naquela madrugada, ficava poucos metros além de nossa própria casa, bastava andar-se por breves cinco minutos para se alcançá-la.

Não entramos no terreno, é claro, pelo colchete de entrada, a não ser que quiséssemos os cachorros ( uma das nossas principais preocupações ) berrando alarmantemente sobre nós. Entramos alguns metros antes; esgueiramo-nos pelo arame e pisamos o chão de terra batida de um campo de pelada, tão baço quanto a estrada. Este pequeno recanto de diversão e uma frondosa árvore ao final de sua extensão era o que nos separava da casa.

Espreitando como ninjas, parando vez ou outra para ouvir e observar, atravessamos o campo. Eu, em meu papel de líder, seguia à frente, sinalizando por cima do ombro para Frango e Decia, que àquele momento, quando eu finalmente atingi a árvore, aguardavam, agachados, junto a trave deste lado.

Tudo aconteceu num átimo. Um dos cachorros, deitado defronte à porta da casa, enganosamente imerso num sono pesado, abriu os grandes olhos cor de âmbar e ergueu rapidamente a cabeça, eriçado as orelhas e antes mesmo que eu pudesse me dar conta avançando em minha direção. O choque fora de tal modo que subi na árvore num segundo, em tamanha agilidade que somente o terror poderia ter impulsionado.
Como era de se esperar, os latidos instantaneamente atraíram os demais cachorros, que agora rodeavam a árvore como feras ensandecidas. Para o ápice do meu pânico, ouvi vozes dentro da casa, e pouco depois uma das janelas da frente se abrir, revelando um emaranhado de cabelos crespos. Instintivamente escondi-me atrás dos galhos grossos da árvore, e por segundo, no qual ouvia o batuque nervoso do meu coração, acreditei que tudo estava perdido, eu fora descoberto. “São só Ratinho e Decinha brincando”, relaxei ao ouvir, quase escorregando pelos galhos de alívio assim que janela voltou a se fechar.

Sem vacilar, pulei da árvore e cheguei ao chão com certa suavidade, mas meu movimento voltou a atrair os cachorros, que saltaram em minha direção tão raivosos quanto antes. Nervoso, fiz menção de avançar contra os atacantes, que por um instante fugaz hesitaram, minha chance de sair correndo campo afora, para me juntar aos outros, que àquela altura já permaneciam seguros além do terreno invadido, à beira da estrada.

Era aparente minha frustração e incredulidade pelo fracasso da missão; nem sequer chegamos ao nosso real alvo!
Frangoo e Decia estavam igualmente decepcionados. Discutimos por algum tempo, ali mesmo, às faces da estrada deserta e decidimos faz mais uma investida. Era agora ou nunca!

Perpassamos novamente a cerca de arame e precipitamo-nos até a árvore, dessa vez mais rápidos e prepotentes. Estávamos resolutos em obter sucesso. Ao que parecia, já não éramos tidos como os intrusos de minutos atrás, uma vez que os cachorros, para nossa maior motivação, limitaram-se a eriçar as orelhas e grasnar sem emoção dos cantos às paredes onde se aninhavam.
Parados junto a árvore, ficamos a escutar por um tempo, concentrados. As vozes dentro da casa nos chegavam agora mais altas e dispostas, era certo que o dia já começava para aquela gente, por isso tínhamos que nos apressar.

A gaiola estava presa à parede lateral à nossa frente, há poucos passos da árvore. Lancei uma olhadela significativa para Frango e Decia e deslizei ao seu encontro. Os cachorros apenas entreolharam carrancudos por debaixo das pálpebras pesadas. Parei rente à parede, com a respiração entrecortada, receando que alguém apareceria e me surpreenderia. Mas a sorte estava do nosso lado, por isso a missão fora completada com êxito: levantei-me na ponta dos pés e ergui as mãos até a gaiola, onde um pássaro miúdo se debateu alarmado assim que tateei sua portinhola e a escancarei, sentindo o coração na boca. "Está livre, amiguinho!"

Voltei à árvore e saímos os três rumo à estrada, agora realmente rápidos, e alarmados, credos de que a qualquer hora fossemos ser descobertos. Mas, acima do receio e da apreensão ou de qualquer outro sentimento, predominava-nos a felicidade. Sentíamo-nos inundados de satisfação, de realização, do mais completo alívio de dever cumprido.

Chegamos finalmente em casa, e ainda sem nos despir – à exceção das máscaras -, infiltramo-nos no quarto turvo e voltamos para o esconderijo debaixo dos lençóis, onde permanecemos silenciosamente ansiosos, palpitando de emoção, à espera do que sabíamos iminentemente estar por acontecer.

De fato, aconteceu mais cedo do que presumíamos. Ouvimos passos no terreiro e espreitamos, os três, as cabeças grudadas umas às outras, pela fresta da janela. Ali, parado contemplando com um olhar perscrutador a casa, estava o não-mais-dono do pássaro que acabávamos de libertar, nosso maior – e único, a bem da verdade – inimigo, Pepeu.

O vimos, com uma última olhada investigativa para a casa, quando, por um relance de segundos, tivemos certeza de que parou sobre a fresta pela qual olhávamos, dar meia-volta e ir embora.
Deslizamos novamente para sob os lençóis e compartilhamos risinhos deleitosos, enquanto o dia clareava quente e a quietude matinal era quebrada por um coro de galos roucos.